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Panacéia da célula-tronco

da Revista Isto É

Executivo ganha na Justiça direito de se submeter a um transplante com essas estruturas. Caso gera discussão sobre as aplicações da terapia

Lena Castellón e Mônica Tarantino
Um caso envolvendo a luta pela vida e o acesso a uma nova esperança de terapia gerou debate entre médicos, cientistas e pacientes na semana passada. Um diretor de um banco de São Paulo, 53 anos, ganhou na Justiça o direito de ser submetido a um transplante de células-tronco – estruturas capazes de se transformar em diversos tecidos do organismo – para tratar de sua doença, a esclerose lateral amiotrófica (ELA). Essa enfermidade é devastadora. Provoca morte de neurônios e fraqueza progressiva dos músculos até causar uma imensa dificuldade respiratória. Cerca da metade dos portadores morre três anos após os primeiros sintomas.
Ciente do diagnóstico há nove meses, o executivo está em tratamento no Hospital Albert Einstein (SP). Nesse período soube da existência de uma terapia com células-tronco feita em caráter experimental. A técnica já foi aplicada no Brasil em quatro pacientes com o objetivo de tratar um dos aspectos que podem estar relacionados à doença. De causa desconhecida, suspeita-se que o mal tenha um componente de auto-agressão (o sistema imunológico não reconhece as células do organismo e as ataca). “A manifestação auto-imune é uma hipótese. O que foi feito nos casos em que usamos células-tronco foi tentar evitar esse processo de auto-agressão”, afirma Júlio Voltarelli, pesquisador do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, onde há um grupo dedicado à pesquisa com enfermidades auto-imunes. O procedimento consistiu na substituição das células da medula óssea (responsável pela fabricação das células de defesa) por células-tronco com potencial para “reconstruir” a fábrica, desta vez de maneira correta. Dois pacientes foram atendidos em São Paulo, sendo que o primeiro morreu meses depois. O segundo se mantém estável. Outros dois foram tratados na Bahia e tiveram alguma melhora.
Sabedor da experiência, o executivo decidiu recorrer ao transplante. Porém, como o hospital não tem protocolo para estudar o tratamento da doença com células-tronco aprovado pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), entidade que regula os estudos com essas células, o paciente procurou o advogado Raul Peris, especialista em direito na área de saúde, para obter na Justiça o direito de recorrer ao método. “Não havia outra opção a não ser garantir o tratamento para evitar danos maiores”, disse Peris a ISTOÉ. A liminar em favor do pedido foi dada pelo juiz José Carlos Motta, da 19ª Vara Federal de São Paulo. “Pareceres médicos recomendaram o transplante como tratamento experimental com chances de melhorar a sobrevida do paciente. Outra alternativa seria assistir passivamente à deterioração trazida pela doença. Levei isso em conta”, explica. Quando saiu a liminar, o executivo tinha perdido os movimentos dos braços e de uma perna e manifestava dificuldade para se alimentar. No dia 11, foi internado para iniciar o processo do transplante.
Procura: muitas pessoas com lesão de medula querem participar da pesquisa coordenada por Barros
O caso despertou muitas discussões. Afinal, envolve a luta pelo acesso a um procedimento ainda bem longe de ser rotina na medicina. E, em geral, tudo o que se relaciona a células-tronco, até agora, se encaixa nessa categoria. Mas a expectativa em relação a essas estruturas é enorme, e é compreensível que seja assim, principalmente para os que enxergam nessas células a última esperança. No serviço coordenado pelo ortopedista Tarcísio Barros, do Hospital das Clínicas de São Paulo, por exemplo, a busca pela terapia celular é diária. Barros lidera um estudo para avaliar sua eficácia no tratamento de pacientes com lesões de medula. “A procura é grande, especialmente depois da divulgação de boas novas”, conta.
Apostar fichas demais nas células versáteis de fato é um problema. A pesquisadora Lygia Pereira, da Universidade de São Paulo, receia que, ante o desespero, doentes partam para qualquer experiência, amparados por medidas judiciais. “Tirar o poder de decisão de um painel como o Conep, constituído por cientistas que visam proteger as pessoas de maus usos da terapia, não me parece correto. Protocolos existem para que doentes não virem cobaias”, alerta. Lygia teme que o ambiente se torne propício para experimentos feitos por quem não tem know-how na terapia. “É uma questão delicada porque, do outro lado, está a agonia de seres humanos”, pondera.
Para fazer estudos com células-tronco, a rotina é passar por aprovação no comitê de pesquisa da instituição e no Conep. A razão é efetuar a investigação com segurança. “O desafio é permitir os avanços sem que isso levante falsas expectativas”, diz William Hossne, presidente do conselho. O processo de aprovação pode durar meses. Depois, serão necessários mais alguns anos para concluir o trabalho. Só então é que a terapia estará disponível para todos. Por ora, a maioria dos beneficiados participa de projetos de pesquisa.
Mesmo ansiosos, muitos pacientes preferem esperar. É o caso do advogado Carlos Valdejão, 36 anos, presidente de uma entidade de portadores de esclerose múltipla, doença que faz parte de estudos com célula-tronco. Ele usa remédios distribuídos pelo governo e não pensa em se submeter a procedimentos experimentais. “Aguardarei os resultados. Precisamos investir no futuro, mas sem inventar uma panacéia”, diz. A Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica também recomenda aos doentes que não recorram ao método até que ele seja bem conhecido. Isso não quer dizer, porém, que se deve enterrar a esperança. Para Ricardo Ribeiro dos Santos, da Fundação Oswaldo Cruz da Bahia, os estudos feitos até o momento, se ainda não apontam grandes ganhos, também não sugerem malefícios. “Por isso, é um direito do cidadão recorrer à Justiça para fazer o tratamento. Nesse caso, é uma terapia heróica, situação que ocorre quando não há mais nada a fazer por um paciente”, acredita.

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